caderno de notas, pág. 14 # Para que alguém suba uma montanha
Para que alguém suba uma montanha com os pés, é necessário um par de ossos especializados em dar suporte ao desconhecido. Digamos que meio dia seja necessário para subir e meio dia seja necessário para descer. Ainda assim, a distância não tornaria nosso pulso de continuar um ato imediato.
Paremos agora no ponto interseccional que dá arranjo para que a montanha seja montanha caminhável, diferente da montanha passageira. A montanha caminhável liga pequenos trechos sinuosos com raízes estruturáveis. Já a montanha passageira dá lugar, cede espaço ao momento seguinte.
Escalar a montanha caminhável é o mesmo que entrar no buraco da fechadura, porque a montanha se forma no vazio, no espaço de encontro entre as duas placas tectônicas. Antes da montanha ser montanha, ela é um espaço vazio?
A montanha passageira precisa de outras pequenas montanhas empilhadas para que tenha seu mesmo efeito de superfície, ainda que necessite de outras superfícies sem se esgotar. Poderíamos dizer, então, que a montanha passageira tenderia ao infinito das montanhas.
Da montanha caminhável para a montanha passageira, existe um intervalo permitido que não condiz com o intervalo habitual. Ao que tudo indica, ambas as montanhas possuem, na sua estrutura de base, acabamento parecido e também uma cobertura similar. Mas, infelizmente, não é permitido se confundir no trajeto, porque o tempo de chegada está acabando para quem um dia já quis voltar a ser pedra.
A montanha é feita de pedra, mas a caverna da montanha tinha conchas. Para fazer o abrigo, precisou-se de água, pedras e conchas. Seus sedimentos também foram deixados ali para que outros manifestos temporais pudessem existir e acontecer. Não que minha constatação tenha alguma importância, mas ao menos aqui eu consegui proteger os ouvidos do vento, depois de dias escutando seus gritos.
Desci profundo na montanha de granito, montanha do tipo caminhável. Dessa vez por dentro e por fora. No meu corpo todas elas estão sobrepostas.
Clara Machado escreve: "é nos dentes que fica preservado por mais tempo o material genético de uma ossada”1. Se, nas montanhas caminháveis se concentra a geologia das eras, seriam então, as montanhas, os dentes da Terra?
(Continua)
Obrigada por ler o caderno de notas! Espero que tenham gostado e nos vemos em breve na próxima página :)
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livro de poesias Ferrugem, de Clara Machado, na página 40.