Fazer arte como serve a mesa
. Peguei essa frase e fui, saí correndo. Puxei a toalha do varal de dentro da gaveta entulhada de coisas guardadas, porque vai que um dia posso precisar, disse minha avó. E precisei. Como quem precisa de uma mapa para achar sua própria identidade.Me propus a esse projeto como uma forma de investigar e incluir novos materiais dentro do meu processo de trabalho. Dar um passo além do tecido de tela, tinta acrílica, costura e inserção de aviamentos, materiais que já utilizei até agora.
As perguntas norteadoras para este processo foram principalmente sobre quais novos materiais eu poderia inserir e sobre quais os motivos de escolher experimentar estes materiais, afinal de contas, dentro do campo das artes, qualquer material pode vir a ser corpo de obra. Então, aqui, o significado da escolha é tão importante quanto o material em si.
Pensando nisso, voltei em um livro que roda dentro de mim: Performances do tempo espiralar (2021), de Leda Maria Martins. Baseado nele, fui caminhar em direção ao passado, pensando que memória também é matéria:
"A memória do conhecimento não se resguarda apenas nos lugares de memória: bibliotecas, museus, arquivos, monumentos oficiais, parques temáticos, etc. Mas constantemente se recria e é transmitido pelos ambientes de memória, ou seja, pelos repertórios orais e corporais, gestos, hábitos, cujas técnicas e cujos procedimentos de transmissão são meios de criação, passagem, reprodução e de preservação dos saberes." (2021, p. 40)
Olhando de fora, pegar memória como matéria parece até óbvio. Mas na hora não era. Nunca é.
Seguimos. Um destes "ambientes de memória", como descreve Leda, aconteceu comigo quando completei 18 anos, em 2007. Recebi uma caixa em tamanho A4, não muito profunda, com objetos deixados pela minha mãe, que havia falecido em 1997, na época com 33 anos. A circunstância em que a caixa foi organizada, os objetos selecionados e a pessoa que os organizou é desconhecida. É como se simplesmente ela - a caixa - tivesse aparecido naquele momento e, a partir da minha maioridade, eu fosse designada como a nova responsável por esses objetos.
A caixa se manteve guardada até o presente momento, porque eu sentia um distanciamento dessa relação, seja pelo pouco tempo de contato que tive com minha mãe, seja pela forma abrupta da separação. O fato é que existia um desconforto, quase físico, material, palpável, de me aproximar. O medo de sentir qualquer tipo de emoção que se apresentasse também permanece. Contudo ela, a caixa, retorna em 2022, porque agora quem faz 33 anos sou eu, a filha.
Voltando aos tais objetos, o primeiro desencadeador deste projeto foi uma toalha xadrez, vermelha e branca, de aproximadamente 1,24 m x 1,21 m, bordada com um grande padrão de cisnes brancos nas pontas. Essa toalha ficou guardada com a minha avó materna desde a partilha dos objetos que pertenceram à minha mãe. Segundo seu relato, foi bordada pela minha mãe e sua irmã mais velha. O barrado em crochê foi feito por ela, minha avó. Três camadas de mulheres.
Ao abrir a toalha, percebi que já conhecia esse modelo de bordado. Um dia antes de visitar minha avó, em visita à casa da minha tia, irmã do meu pai, esta me entrega um maço de gabaritos de bordados, específicos para aquele tipo de tecido xadrez. Lá no meio estava o mesmo gabarito de cisnes da toalha.
Uma não sabia da história da outra e nem do meu processo de pesquisa com a caixa, ou seja, percebi que ali havia um fio condutor invisível. Aqueles objetos me apresentavam uma "agência de vida" para além do meu campo pessoal, ao mobilizar outras pessoas do meu entorno.
Depois de todo esse movimento, remexendo a caixa mais uma vez, percebo uma foto que tinha passado aos meus olhos. Uma foto muito curiosa por sinal. O aniversário de uma criança que não sou eu (provavelmente minha prima), decorado com uma toalha igual, mas não a mesma. Ou seria a mesma, já não sei.
Na distância que separa a última newsletter desta aqui, pouca coisa aconteceu. Entrei em contato com a empresa que produz o tecido xadrez, porém sem sucesso. Mas descobri que ele ainda é fabricado e possui o mesmo nome: xadrez vencedora. Achei curioso esse nome, guardei essa informação.
Também escrevi algumas vontades sobre os objetos, mas confesso que ainda existe um certo distanciamento em relação a eles. Pensei até em eleger a distância como uma "materialidade” (ou como um dos objetos).
(Continua)
Escrevo agora de Cusco, Perú. Queria ter enviado essa parte do texto no final de julho, mas por conta da viagem, a linha embolou.
Ainda em tempo, a próxima newsletter do projeto 33 deve chegar em setembro, e, antes disso, entram algumas atualizações do ateliê também.
Obrigada por me acompanhar até aqui, um beijo e até breve!
MIYADA, Paulo. Anna Maria Maiolino - PSSSIIIUUU… .São Paulo: Instituto Tomie Ohtake, 2022. pág. 37
MARTINS, Leda Maria. Performance do tempo espiralar, poéticas do corpo-tela. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021.