pág. 14 # projeto 33: carteira de trabalho
esta é a parte 2 de 2.
Se você chegou agora ou já chegou há mais tempo, agradeço por estar aqui. Feliz ano novo pra nós! :)
Escolhi começar o ano dando continuidade ao projeto 33, um projeto pessoal de pesquisa poética que começou em junho de 2022, ano em que completei 33 anos, sendo 33 também a idade de morte da minha mãe. A partir de um disparador proposto no acompanhamento crítico que fiz naquele período, comecei a investigar 33 objetos que recebi de herança quando completei 18 anos. Os objetos são aleatórios e não possuem relação aparente entre si. Contei sobre eles aqui:
O objeto de hoje é a carteira de trabalho do meu avô, pai da minha mãe.
Uma coisa não faz sentido, até que se dê sentido a determinada coisa. Assim, um punhado de coisas e eventos sem sentido começam a fazer sentido ao se adicionar uma linha em zigue-zague e um plástico de proteção, como na imagem acima. Me explico.
O objeto carteira de trabalho nunca me interessou de fato, mas as informações que estavam ali me mostravam pontos de contato que poderiam ser interessantes no meu trajeto. Acredito que minha atenção definitiva na carteira de trabalho, como objeto seguinte a ser escolhido, tenha se dado no Salão de Artes de Vinhedo, em setembro de 2022. Foi minha primeira exposição coletiva, e também quando conheci pessoalmente as superfícies rochosas da artista Anna Menezes e seu trabalho Corpo-pedra: encontro de pedras.
Nunca tinha entrado em contato com a pedra sob a perspectiva corpórea que Anna me apresentava e, a partir disso, comecei então a reparar em como as pedras me rondavam de alguma maneira. Já na carteira de trabalho, a palavra que me perseguia era a definição da profissão de meu avô: graniteiro, ou seja, profissional responsável pela extração e/ou beneficiamento do granito. O granito, por sua vez, é uma rocha ornamental muito utilizado na construção civil e é formada a partir do magma e minerais. Se você tiver pedra na bancada da sua cozinha ou no banheiro, é provável que seja granito.
Bem, pouco se sabe sobre a real história do meu avô. E, dentre esses fragmentos que começam algo, a história de que meu bisavô - pai dele - construía pontes no meio de algum lugar desconhecido parece fazer algum sentido. Quando a família e seus membros chegaram ao Brasil, fugidos de mais uma possível guerra, tentaram ir para a Argentina, mas foram barrados na fronteira. No caminho de volta, se fixaram numa cidade chamada Santa Cruz, mais ou menos no centro do estado do Rio Grande do Sul. Tudo que sabiam era mexer com pedras, e reza a lenda que, quando meu bisavô não esculpia túmulos, ele esculpia mãos.
Já eu, focada no meu objetivo inicial do projeto que era investigar e incluir novos materiais dentro do meu processo de trabalho e procurando um direcionamento maior de possibilidades para utilizar essa informação da pedra, entrei em contato com a Anna que, para minha tristeza pessoal, não pesquisava granito. Respirei fundo e internalizei que, nessa altura, meu fio condutor já não existia mais e esculpir pedras também não passava pelo meu escopo. Era tudo muito arrastado, e houve outras investidas em explorar o material, mas sem sucesso. Isso tudo já em outubro, e posso dizer que, naquele momento, eu parcialmente desisti do objeto carteira.
“Sem dúvida, é preciso ir ao fundo do devaneio para se comover diante do grande museu das coisas insignificantes.”
A Poética do Espaço, p. 290
Mal sabia eu que, no final de novembro, estaria deslocada a aproximadamente 5.424km de distância de Brasília, diante de uma placa informativa contando que o que eu via na minha frente era uma montanha de granito, na província de Santa Cruz, no meio mais ao sul da Argentina. Sim, parece mentira. Naquele momento, não só a palavra granito rodava na minha cabeça, mas as palavras Santa Cruz e Argentina também.
Aquele arranjo de palavras, informações e agências me mostrava algo muito mais complexo do que eu poderia prever, já que minha proposta inicial era finalizar o projeto 33 no meu aniversário de 34 anos (no meio deste ano). Compreendi naquele momento que me relacionar com os objetos tomaria mais tempo e me pediria mais profundidade do que somente seguir um cronograma a qualquer preço. E a carteira, a tal pedra e a montanha me mostravam isso.
Não pensei no que eu estava fazendo, apenas trouxe um pedacinho de montanha de granito em formato de montanha comigo na mala, e depois ele - o pedacinho - me mostraria o que fazer. Além da mudança no prazo de conclusão do projeto 33, outra coisa que mudou foi que eu, além de incluir novos materiais no meu trabalho, também precisava incluir esse novo “fator processual” que chamei carinhosamente de confiança no material.
E o que caracteriza uma montanha? Montanhas são grandes elevações da superfície terrestre. Uma montanha tem imponência e altitude superiores a uma colina. Embora não exista uma altitude específica única para essa diferenciação, considera-se que apresentam altitudes superiores a 300 metros e paisagem acidentada. Formam-se por meio de acidentes geográficos.
As montanhas mais elevadas resultam de desdobramentos, isto é, de forças internas que provocam enormes dobras nas rochas. As montanhas jovens são mais altas. As montanhas velhas são mais baixas. O corpo humano também perde altura quando envelhece.
Meu avô e seus irmãos homens morreram pela garganta, pelo pó inalado das pedras de granito numa época em que nem se pensava em equipamentos de proteção para o trabalho. Eu não o conheci, e minha mãe tinha nove anos. Vovô, então, morreu de montanha. Morreu de um acidente geográfico e de forças internas que provocaram enormes dobras em seu pulmão. Certa vez, chorei de saudades sem nem conhecê-lo, de soluçar. Como pode isso? Seria possível existir saudade herdada biologicamente de minha mãe? Se vovô morreu de acidente geográfico, virou montanha?
Passei a olhar o pedacinho de montanha como preenchedor de um espaço que era vazio, mas que até aquele momento eu não sabia que era vazio.
"Sopra um vento terrível
É apenas um buraco no meu peito"
Henri Michaux
Escrevi o texto introdutório - a parte 1 - no caminho de volta para casa, muito provavelmente porque, depois de subir uma montanha, também me sentia um pouco pedra, um pouco corpo-pedra. Com isso, comecei a pensar no pedaço de granito em formato de montanha como um padrão, uma forma que se repetia na paisagem, na minha própria paisagem.
Através dele, repliquei o formato em tecido, usando retalhos tanto na parte externa quanto no seu enchimento. Confesso que não tem todos os detalhes que eu gostaria, mas a construção deste pequeno objeto tridimensional e fofo já me deixou muito satisfeita e pensativa para os próximos passos.
Esse novo objeto poderia evidenciar essa nova forma de vida expandida que habita ali, que não necessariamente tem a ver com vida material ou biológica. Penso que esse novo objeto guardaria a matéria viva do que já existiu e do que passa a existir através dessa nova forma.
Agora não é mais uma memória dura.
O caderno de notas é um projeto gratuito onde compartilho sobre meu processo de trabalho e movimentos que acontecem no ateliê. Se você gosta do que eu escrevo por aqui e gostaria de me dar uma força extra, você pode:
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E não vamos nada mal, o vento passa por entre os espaços que nós e a massa dos nossos membros deixamos livres. As gargantas libertam-se nas montanhas! É de admirar que não cantemos. Franz Kafka, Os contos.