Uma carta para Eva Hesse
Querida Eva,
Daqui do presente querem que eu leia sobre você.
Em junho, me emprestaram este livro que, de tão delicado, tive medo de abrir. Guardei-o na gaveta em busca de protegê-lo dos meus gatos (e de mim mesma, talvez?) e esperando a oportunidade de devolvê-lo ao dono.
Dois meses para frente, visitando uma das paisagens mais duras e fascinantes que já pude conhecer, seu livro se materializa na saída do museu, junto de outros exemplares em promoção. Estava ali sozinho, a última unidade, e até carregava as mesmas marcas de mãos que o primeiro livro emprestado mantinha, quase um fantasma na minha frente.
Logo nas primeiras linhas, achei bonito como você conversava com seu trabalho ainda em processo, ou mesmo com aqueles já finalizados. Ao mesmo tempo em que lia suas anotações, também fui relendo o que eu escrevi nos meus cadernos, num misto de desconforto com zelo e aproximação das palavras. Me impressiona a capacidade que você tinha de criar uma relação íntima e duradoura com seus trabalhos, mas, ao mesmo tempo, essa mesma energia era usada para destruí-los com a justificativa de recomeçar um novo interesse. Confesso que isso me deixou fascinada e ao mesmo tempo com uma certa raiva ao realizar que aquela obra posta em imagem no livro já não existia mais.
Todas as vezes que você ficou suspensa no ar, um pouco de mim também ficava. Permaneci assim depois que voltei da residência na Argentina. Completamente revirada. Toda minha energia tinha sido depositada naqueles vinte dias e, quando voltei para a rotina de trabalho, o modo de operar havia mudado.
Me aproximei da ‘intervenção na paisagem’ de uma forma mais sutil e redescobri minha máquina fotográfica quase analógica, reaprendendo a registrar meu próprio trabalho num dispositivo que não conecta ao wi-fi. Mas também recebi de muitos lados o selo de 'arte têxtil' e fiquei um tanto incomodada. Quem é artista e o material é o tecido, é sempre posto como ‘arte têxtil’? - me fiz essa pergunta mil vezes. Em resposta, reescrevo aqui um trecho que me pegou pela mão em muitas destas pausas:
“Os desenhos foram seu apoio durante todo esse tempo”, lembra Tom Doyle (casado com Eva entre 1961 até 1966) . […] Eu estava tentando fazer com que ela transferisse os desenhos para a tela. E com alguns isso aconteceu, mas nunca funcionou. Seus desenhos, em alguns aspectos, pareciam mais esculturas do que pinturas - como se relacionavam com o espaço - talvez por isso ela nunca tenha conseguido transferi-los para a pintura. "É uma questão de encontrar seu próprio material." (pág. 49)
Quando você e Tom saíram de Nova York e foram trabalhar por um ano na Alemanha, na fábrica têxtil desativada, voltei a prestar atenção nos meus próprios interesses absurdos. Foi um processo lento e foram meses de observação. Me agarrei um pouco no que acontecia com você, mesmo que estejamos afastadas nesta espiral do tempo. Hoje, relendo o que anotei daquele período, percebo que a resposta de Sol LeWitt a você também pegou em mim. Eu estava cansada.
A partir disso, meu maior interesse tem sido, acredite, observar máquinas de trabalhos muito específicos, quase refinados. E aqui eu agradeço por você compartilhar que desenhava ‘máquinas loucas’ em 1965, isso foi importante. Em 2022 eu já desenhava o que chamei provisoriamente de ‘circuitos’, mas depois de ler um pouco mais de Suely Rolnik este ano, passei a chamar estes desenhos de ‘dispositivos’, tomando a liberdade de subverter o pouco que me cabe desta palavra.
Tem quem goste de saber do funcionamento dessas ‘máquinas loucas’ através do desmonte. Eu, particularmente, fico hipnotizada com a coreografia que acontece do encaixe das peças e a consequência que se apresenta. Paralelamente a isso, fico tentando reproduzir o que vejo, numa escala confortável para minhas mãos. Também passei a desenhar correntes e visualizar articulações que unem as partes destes ‘dispositivos’.
Ao longo do trabalho em ateliê, que voltou para dentro de casa em dezembro, tenho visualizado imagens de moldes para construir objetos em tecido. Também aprendi a forrar e dar acabamento através dessas imagens. As cores que me encontram ainda são vibrantes demais, não estou satisfeita, mas também entendo que existe um desejo de ritmo ainda não revelado, cadenciado, talvez um pouco como fábrica, mas também um pouco como articulação de gente.
Por último, compartilho a notícia de que em janeiro vou participar de uma nova residência, desta vez em São Paulo, num lugar que chamam de ‘usina’. Me parece um bom lugar para estar depois do que atravessei com você na fábrica têxtil e nos outros lugares que se seguiram - que eu acredito que ainda vamos voltar -. Curiosamente, cheguei na última página, no último dia de 2023.
Agora estamos oficialmente em 2024. Agradeço por ler até aqui e espero te encontrar na próxima carta.
Com carinho,
Desirée.
Em 14 de abril, LeWitt respondeu a essa carta [de Eva Hesse] em termos inequívocos e com o melhor conselho possível:
“Parece que você é a mesma de sempre e, sendo você, você a odeia a cada minuto. Diga 'Vá se foder' para ela. Para o mundo de vez em quando. Você tem todo o direito. Apenas pare de pensar, de se preocupar, de olhar para trás, de questionar, de duvidar, de temer, de sofrer, de esperar por uma saída fácil, de lutar, de chiar, confundir você, coçar, resgatar, murmurar, cambalear, rosnar, humilhar, tropeçar, rugir, vagar, apostar, desabar, ofuscar, resolver, fisgar, incubar, conspirar, resmungar, gemer, assobiar, polir, enganar, criticar, irritar, cutucar narizes, estufar bolas, cutucar olhos, apontar dedos, escorregar por becos, esperar muito, com pequenos passos, parecer feio, coçar as costas, procurar, deslizar, turvar, moer, moer, moer você mesma sem parar. Pare e apenas FAÇA.
Pela sua descrição e pelo que sei do seu trabalho anterior e da sua habilidade, o que você está fazendo parece muito bom. ‘Desenhos limpos e claros, mas malucos como máquinas, maiores, mais ousados, um verdadeiro absurdo.’ Isso parece maravilhoso: um verdadeiro absurdo. Faça mais. Mais máquinas malucas, mais malucas, mais seios, pênis, bucetas, o que quiser: faça-os transbordar de bobagens. Tente fazer algo divertido dentro de você, seu ‘estranho senso de humor’. Se você tem medo, aproveite: desenhe e pinte seu medo e sua ansiedade. Você para de se preocupar com coisas grandes e profundas, como 'decidir um propósito e um modo de vida, uma abordagem consistente até mesmo para algum fim impossível ou mesmo imaginado'. Você tem que praticar ser estúpida, tola, irrefletida, vazia. Então você pode FAZER! Tenho muita confiança em você e embora você se atormente, seu trabalho é muito bom. Tente fazer um trabalho RUIM. A pior coisa que você pode pensar e ver o que acontece, mas acima de tudo relaxe e deixe tudo ir para o inferno. Você não é responsável pelo mundo: você é responsável apenas pelo seu trabalho, então faça-o. E não pense que seu trabalho precisa se adequar a alguma ideia ou sabor. Pode ser o que você quiser. Mas se parar de trabalhar facilita sua vida, então deixe-o. Não se castigue. No entanto, acho que é algo tão profundamente enraizado em você que seria mais fácil apenas FAZER." pág 60-61
Referências:
Livro: Eva Hesse, escrito por Lucy R. Lippard, tradução para o espanhol de Juan Elias Tovar e Sonia Verjovsky, editora Alias.
Imagens: https://www.hauserwirth.com/artists/2810-eva-hesse/
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